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Bondage - Consentimento e Liberdade

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Reclaim your Wild Feminine Essence. 

Bondage - Consentimento e Liberdade

DanzaMedicina

Em uma tarde qualquer em Nova York, organizando minha agenda para meus últimos dois dias na cidade, me lembrei subitamente de uma figura intrigante que há pouco eu havia conhecido, pelo Instagram.

Seu nome no perfil era "kiss me deadly doll” (o nome verdadeiro não constava como descrição de quem ela era), e suas fotos, algumas bizarrices possíveis de sadomasoquismo, porém dotadas com um elegante senso estético. Interessantemente, mesmo as poucas fotografias em que ela estava como submissa, era visível uma força singular naquela mulher- "ela sabe muito bem onde está e o que estava fazendo", pensei.

Eu, como agora me confessando, sentia uma certa atração pelas amarrações de Bondage já há algum tempo. Gostava dos nós, dos desenhos que formavam junto ao corpo, da composição das suspensões, das possíveis posturas artísticas de referências e de outras cositas más que eu conscientemente não conseguia explicar o que era.

Terminando minha estadia na cidade, já estava com quase toda a programação completa para os próximos dias de Nova York: uma exposição chamada “Radical Women" na ala feminista do Brooklin Museum com instalações de artistas feministas da década de 60 e 70; a performance “women in the front” que abordava artisticamente temas como sexismo, racismo e empoderamento sexual; uma noite de Ecstatic Dance em Manhattan; uma cerimonia tradicional de chá chinês... e por aí vai.

Pensando em rechear minha agenda com mais uma peripécia, resolvi mandar uma mensagem para a tal mulher que tinha como fotografia de perfil os olhos vendados e uma banana enorme na boca. Perguntei se ela conhecia alguém em NY que trabalhasse com Bondage; obviamente, eu não esperava receber nenhuma resposta.

Poucos minutos depois, recebi uma notificação no celular “why would you like to do that?"- "Por que você gostaria de fazer isso?"

No mesmo instante senti aquele frio na barriga e já comecei a explicar, com todo cuidado e precisão possíveis, mesmo se tratando de impulsos tão subjetivos, qual era minha visão sobre a experiência. Minhas razões eram "muito nobres", então, mesmo que por fim eu desistisse, senti que seria interessante compartilhar com ela sobre os meus porquês!

Comecei explicando sobre o foco do meu estudo na exploração da relação entre corpo e conteúdos internos. Expliquei sobre o meu trabalho com a DanzaMedicina, que traz como objetivo o diálogo entre determinados estímulos- como movimentos e posturas corporais - para ativação de memórias e ressignificação de padrões. Expliquei que este método estava sendo desenvolvido em um projeto experimental por mais de uma década, e que o Bondage viria como uma nova forma de exploração.

Expliquei também que me intrigava a ideia de que, quando trabalhamos a níveis mais profundos dentro da experiência corporal, é comum que as memórias vindas à tona não se refiram somente a histórias, padrões, julgamentos, traumas e vivências pessoais- mas também a toda uma gama de informações providas do inconsciente coletivo, que está acima e além de nós como indivíduos, mas nos permeia, nos afeta, nos influencia como um conteúdo não racionalmente integrado; que a isso se resumia minha pesquisa.

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Expliquei que meu desejo era experimentar em meu corpo o que viria, que tipo de memória seria ativada: que tipo de sensações, sentimentos, pensamentos, emoções que meu corpo contextualizaria sendo colocado amarrado, pendurado, em completa vulnerabilidade, opressão e dor. Queria saber quais as vozes que iriam falar comigo nesta situação e quais histórias elas iriam me contar sobre meu ser mulher, estando em amarras.

Ela respondeu, no minuto seguinte, que tudo aquilo fazia muito sentido para ela. Percebendo o tom de sua escrita, a gentileza de suas colocações e a clareza em suas partilhas, comecei a notar que bem além de todo meu julgamento sobre quem era aquela mulher surgia um sentimento de empatia, uma abertura, uma escuta atenta, um diálogo... um encontro.

Chelsea (agora já sabia o nome da mulher por trás do perfil com a banana na boca) disse que poderia me encontrar quando eu estivesse disponível e que isso não viria como uma proposta de trabalho, mas sim como uma experiência também para ela- em seu próprio estudo sobre a bodagem e suas tantas camadas de exploração.

Em choque, voltei em seu perfil e me dei conta: ela mesma estava em NY, a alguns blocos de onde eu estava!

Acordei no dia da sessão me sentindo extremamente ansiosa como há muitos anos não sentia, e chegue à casa dela um pouco mais tranquila por perceber que era um lugar... vamos dizer... limpo e descente (me sinto ridícula em dizer isso agora mas bem, vamos que vamos). Na porta, ao tocar a campainha, Aline, a fotografa que eu conhecera há algumas horas atrás, me contou, entre um quê de timidez e um tom de lealdade, que passara o endereço de Chelsea para seu namorado, "caso alguma coisa acontecesse". Obviamente, neste momento eu já ria de mim mesma pensando em toda a ideia pré-concebida que criei (ou foi criada) em minha mente, cheia de julgamentos e aversão.

Chelsea abriu a porta com seus olhos grandes e brilhantes, seu sorriso gentil, um silencio interno de plenitude que dialogava ao mesmo tempo com uma presença forte e vibrante.

A casa tinha um salão amplo, com fotografias artísticas de um sadomasoquismo impressionantemente estético- tinha toda uma influencia minimalista japonesa entre cordas, tatames e bambus (sim, para as suspenções de corpo). Naquele momento eu já me sentia totalmente segura e confiante em minha decisão, na Chelsea, na experiência em si.

Conversamos um pouco sobre as sincronias que nos levaram até ali e seguimos para a preparação da primeira sessão. Chelsea me explicou sobre a posição de inicio do trabalho, que deveria ser como as posturas das artes marciais japonesas. Começamos a rir percebendo que, mesmo sem saber de nada, eu já estava sentada exatamente como ela sugeriu, pronta para mais uma experiência sensorial digamos.. um tanto intensa.

No momento de começarmos a amarração, Chelsea me olhou nos olhos como quem pede autorização para entrar em meu campo e ao mesmo tempo agradece pela oportunidade da entrega.

Sentou-se de joelhos, com suas as pernas envolvendo as laterais do meu corpo. Tocou levemente meus ombros e começou devagar a deslizar as mãos até meus punhos, fazendo uma leve pressão e trazendo em um relance os meus dois braços cruzados atrás de minhas costas. Senti que começava a amarração pelas mãos, depois contornando os braços e o troco, fazendo nós perfeitos de forma que o desenho das cordas definissem um colete que contornavam os seios em perfeita simetria.

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Minha respiração foi se tornando mais curta, enquanto as cordas ficavam mais apertadas. Junto ao ajuste do corpo, a mente também ia se reduzindo a pensamentos que se tornavam cada vez mais turbulentos... fui percebendo que o movimento de agitação da mente agitava também minha respiração: nenhuma novidade para uma praticante com mais de uma década de vipassana meditation e yoga. Com a respiração calma, lenta, rasa, fui me tornando mais e mais introspectiva, silenciando para poder auscultar os ruídos internos.

Subitamente Chelsea fez uma manobra que me colocou no chão. Eu nesta altura, já estava com todo o tronco amarrado, e começava a receber as amarrações nos tornozelos.

Me vendo ali no chão, completamente indefesa, imóvel e vulnerável, fui tomada por uma profunda tristeza, em reconhecimento dos tantos momentos que vivi em relacionamentos abusivos, a sensação de estar sendo humilhada, rechaçada, dominada, não vista... de estar tendo meu poder sendo tirado de mim e me assistir indefesa e sem forças para me erguer diante disso. Comecei a assistir a algumas cenas de minha vida e a chorar algumas dores ainda engasgadas... tristeza que se transformou em raiva e que aos poucos, a medida que eu ia narrando esses meus espaços internos à Chelsea, iam se desenrolando em novos entendimentos.

 No início da sessão, ela comentou que comunicação ali nunca era demais, e que eu seria aquela no controle de até onde eu queria/permitia ir- compreendi que existia um consentimento claro entre as partes, "vitima e agressor”, e que o masoquista era quem estava no comando, não o sado.

Chelsea comentou também que ali não havia "resposta errada”. Me indicou expressar especialmente sobre os movimentos dos meus dedos e a circulação em minhas mãos, pois a suspensão poderia realmente causar danos aos nervos do braço e distensões. Porém, mais do que falar sobre eu não sentir mais minhas mãos, eu narrava para ela todos aqueles espaços internos obscuros que eu penetrava, como se ela tivesse que, de alguma forma, me sustentar no processo de abertura de espaços que ela mesma provocou... na verdade, esse era o presente que eu oferecia à ela.

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Chelsea, em sua presença amorosa, ouvia silenciosa, quase como quem ouve uma prece... ao mesmo tempo, deixava meu corpo mais suspenso e firmava com um pouco mais de intensidade os nós- sem dó nem piedade.

A partir deste espaço de vulnerabilidade e fragilidade e de um "abuso consentido", percebi que aquelas cordas já estavam alí há muito tempo, dentro me mim, me prendendo, me causando dores e desconfortos... e que as cordas colocadas por Chelsea apenas me ajudavam a ver os lugares internos de minhas próprias amarras, desamores, armaduras.

Agora, a questão não era mais: como puderam me abusar? Mas sim: como eu me permiti ser tão abusada? E a resposta veio: "eu gosto disso, gosto da dor, mas estou com vergonha, sinto culpa... " – Eu disse à Chelsea em um sorriso entre lágrimas, como um raio de sol que ressurge depois de uma tempestade.

Naquele momento comecei a compreender que aquilo era para mim um rito de iniciação para que eu pudesse me libertar do meu vitimismo, da minha necessidade de controlar os outros através de minha dor, me libertar do meu próprio apego ao sofrimento. Foi como limpar os cantinhos escondidos, as rebarbas que sobraram de um porão escuro já muito revirado e cheio de tranqueiras emocionais... foi achar mais um tapete esquecido para bater a sujeira por debaixo.

Naquele momento, entre cordas e marcas na pele, eu firmei comigo mesma o compromisso de ter discernimento e clareza com relação aos papéis que eu escolho exercer em minha vida e em minhas relações. Não acobertando ou justificando, muito menos diminuindo a responsabilidade do outro em uma relação toxica, mas pelo meu lado da narrativa, assumindo a responsabilidade por minhas dores e a consciência pelas dores que eu permito, então, que me sejam causadas.

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Fotografias por Aline Muller


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Morena Cardoso é facilitadora e visionária da DanzaMedicina. Uma mulher que carrega em suas veias a medicina agridoce de uma artista Latinoamericana que inspira rupturas nas estruturas vigentes e hegemônicas desde o corpo-mulher, em uma fina tecedura entre os saberes ancestrais e o feminino na contemporaneidade. Terapeuta corporal, escritora, ativista, peregrina e heroína de sua própria jornada, Morena caminhou por mais de uma década em busca de conhecimentos tradicionais, sítios sagrados e povos originários ao redor do mundo;  incorporando diferentes modos de se relacionar com o universo psíquico, a natureza, o corpo, e o Ser-Mulher.  Este processo de desconstrução e criação de novas subjetividades resultou no que hoje Morena apresenta como a DanzaMedicina: uma prática experimental de dança e movimento que visita uma dezena de países ao redor do mundo em forma de workshops, retiros e conferências.